playlistinha - momentos

  • Ouça o seu silêncio

24 de fevereiro de 2008

Na tarde de pouco sol, em frente ao espelho que ocupava a parede toda, escolheu o verde para vestir os olhos, certa de que era a cor da frieza que buscava. Desde sempre, conheceu pessoas de olhos verdes que se mostraram mais intimas da maldade. Talvez um julgamento generalizado demais, mas era assim.

O verde dá uma infinitude ao olhar que não permite a percepção da real intenção da pessoa. E era assim que Marta seria dali para frente. Nem boa nem má, apenas de momento.
E o momento, naquela tarde, pedia o cabelo levemente jogado, marrom, olhos contornados pelo negro, ressaltando o infinito. Na boca, o brilho da saliva cobrindo o tom rosa causado pela mordida bem-intencionada. É isso, diz em voz baixa.
Sai em passo largo, e se ouve apenas o toc do salto cadenciando a troca de pernas em direção à rua. Ela nunca anda em silêncio. Tem sua trilha sonora composta para cada destino, cada desejo, cada encontro.
A mala vermelha foi deixada em frente ao espelho, para que o coração ficasse bem-acompanhado de si mesmo. Ele estaria bem.

Ninguém que tenha cruzado seu caminho reparou o olhar, guardado sob o óculos. Muitos olhavam aquela mulher, que subiu a rua curva, e parou exatos 300 passos depois.
Não, Marta não sofria nenhum transtorno obsessivo por contar passos. Apenas sabia distrair a atenção para não desistir de seguir com a decisão tomada.
A tarde se despediu no momento em que ela chegou ao ponto escolhido. E a luz da noite começava a cair sobre suas costas largas, de quem nadou muito na infância, revelando a pele quase branca, delicadamente arrepiada pelo vento do fim de tarde. Óculos não são mais necessários, mas ela insiste em mantê-los, enquanto pergunta-se o valor de seu riso.
O som é lento, piano e cello. Esquenta o sangue que enrijece o meio das pernas.
- Quanto?
- Me diga você. Quanto te parece?
- Muito.
- Sinto muito (pisca e oferta o primeiro sorriso molhado da noite).
Por vezes, se distrai ao olhar do outro lado da rua a menina magra, sem cor, caminhando de um lado ao outro impaciente com a falta de atenção. Ri, diverte-se. Sempre soube que a ansiedade transformava objetos raros em mulheres pequenas.
E a pequenice nunca fora sua amiga.
- Quanto?
- Me diga você. Quanto te parece?
- Se você não sabe, o que faz aqui?
- Engana-se. Você não procura por mim. (segundo sorriso)
Horas correm, carros passam, e ela apenas espera. É doce observar. Quando percebe não estar sozinha. A voz que de repente se aproxima de seu ouvido é mais suave que as anteriores, acelera batimentos.
Apenas o cumprimento, sem a pergunta.
Leve baixada de olhos e...
- Quanto te parece?
- Não me importa quanto.
- Quase uma boa resposta.
Resiste a se virar e apenas ouve.
- Quanto te custa estar aqui?
- Quase nada, não pago e não cobro.
E sente encostar o corpo. Os espaços vazios entre um e outro denunciam a semelhança.
O ar quente em sua nuca entrega:
- Ontem estive aqui. Não te achei. Anteontem também.
- A obviedade não combina comigo, meu bem.
- É hoje?
- Ainda não.
Marta sente os lábios secarem. É hora de voltar. E sem se virar, segue o contorno da rua, levando o terceiro sorriso, mais exato que os outros. Aquela voz que a encontra algumas noites fica mais uma vez para traz, sem rosto, sem nome. Apenas o redondo do corpo morno será suficiente para ser reconhecida, amanhã.

2 comentários:

Unknown disse...

Lidia Paula, Lidia Paula, quando leio um texto assim quase penso "tomara que ela nunca seja feliz"

Te amo, minha amiga. E sinto tanto, tanto, tanto orgulho de ti e das tuas letras...

Cris

elepê disse...

Felicidade independe da quantidade de água que leva por dentro. É a água que carrega as tais letras. Ser feliz apesar de triste é como a fórmula da coca-cola, é fazer o mundo inteiro ser apaixonado por um líquido preto.