Eu fugi de lá. Deixei as águas que afogavam. Saí corrida, escapada, quase tropeçando, de qualquer jeito, o jeito era sair. Ir embora.
Era um sofoco, uma dor, um querer, querer mais. Eu não cabia alí, não encaixava, vivia escorregando. Quando agarrava qualquer coisa que se parecesse com o que queria, os dedos abriam, desmandados. E perdia. Nada durava.
Agora fora, de fora, dói. Apenas dói. Não acho nada que represente melhor o sentimento. Porque amo. Era uma infelicidade feliz. Feliz por fora e infeliz por dentro. Hoje, feliz por dentro, mas por fora...
As noites passadas em companhia. Os sonhos elaborados, as decepções divididas. Ainda assim, era eu.
Me deixei pra trás, junto com os medos. Hoje, medo só de me perder de mim. Ou seja, nenhum medo. O que mais temia aconteceu. Sem querer, eu fugi de lá, e me esqueci de me levar comigo.
E se lá sou eu, estou presa a mim.
Eu fujo de mim o tempo todo, eu me busco todo o tempo.
Ontem sonhei com aqui, hoje sonho com lá. E o medo, de ter aquela sensação de casa de novo e, de novo, não mais querer.
Queria as ruas com árvores, cheiro de frio. Pouca conversa, silêncio na rua, veja se pode.
Queria a crueza das relações, a presença pela presença, o voltar pra casa e ainda ser cedo. A tosquice dos detalhes.
Queria te desejar e só desejar. Ter é fácil demais. Prazer é desejar.
Hoje é por um fio. O fio do tempo. Todo o tempo do mundo já significa metade de todo o tempo do mundo.
Então, temos metade de todo o tempo do mundo para querer, nos querer, nos ter e nos guardar. Em casa, eu.
Voltas e voltas querendo dizer que sinto falta de ti, coisa, lugar, pessoa, que me representa. Que me faz lembrar a menina de pele bronzeada, olho torto e roupa rosa correndo pra cima e pro lado. Ela era meiga, apesar da descrição. Ela desejou, inventou, transformou o mundinho num espaço infinito. E engoliu. Pôs pra dentro o próprio mundo até não mais caber em si. E aí, haja quem faça essa criatura, meio menina, meio mundo, caber em qualquer forma. Na mais larga, ela folga, na mais estreita, ela sobra.
Ela segue desejando, porém, não desejar. Mutila-se. Comprime a compreensão de vida no aqui e agora. E quando deita na cama, toma banho ou vê um domingo chuvoso passar, relembra a que veio e com quem quer ir, mesmo que já não possa mais.
playlistinha - momentos
- Ouça o seu silêncio
20 de março de 2007
auto-volta _ maldita memória
19 de março de 2007
quase [mário de sá-carneiro]
Um pouco mais de sol — eu era brasa.
Um pouco mais de azul — eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador d'espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho — ó dor! — quase vivido...
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim — quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo... e tudo errou...
— Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... —
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...
Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
Um pouco mais de sol — e fora brasa,
Um pouco mais de azul — e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
(Paris, 13 de maio de 1913)
Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.
(Lisboa, fevereiro de 1914)
12 de março de 2007
para a maioria, sucesso. para ela, morte.
Acorda, liga a cafeteira (de preferência com pó e água já), limpa lá fora, olha a janela, faz carinho nele, faz carinho nela. Volta. serve, adoça, toma. Pensa. A hora. Tudo bem. Fala com ele, fala com ela, ambos querem. Cede. Veste-se. Saem, os três. Uma volta na primeira quadra. É pouco. Seguem para a segunda. Ela cansa, ele puxa. Voltam. Lencinhos umedecidos, primeiro ela, depois ele. Acende a luz, Verifica se todos estão vivos. Estão, menos mal. Um punhado e fecha a tampa. Pensa. Olha pela janela. Primeiro, que bom. Em seguida, que ruim. Deprime. Hoje é exceção, veste-se de outra, óculos, ninguém precisa saber. Sai. A mesma quadra. A mesma segunda quadra. Sem volta. Espera. Resmunga, blasfema, sente o vento, agradece, arrepende-se. Conforma-se. Olha ele! Entra. Calor, por que eu? Pensa. O cartão, o dinheiro, o cartão. Passa. Espera. Por dentro chora, por fora sua. Desce, caminha. Botão. Ainda dá tempo. Entra, não dá mais. Sobe. Oi, oi, oi, apenas a cabeça, apenas o sorriso, oi. Senta. Pensa. Puta-que-o-pariu. Espera. Espera muito. O olho pesa, a bunda dorme. Um sinal, curto. 2 horas, 4 horas, um respiro. Preciso. Vida ou morte. Sai. Êxtase! Vinte passos pra lá, vinte passos pra cá. Fim. Confinamento repetido. Espera. um sinal, um sinal. Pensa. Passa logo. Qual o sentido? Na verdade? Nenhum. Anima-se, falta dois, um. Alforria momentânea. Serve. Saí, Agora flutuando, mesmo que dure pouco. Espera, que bom, o vento volta. cartão, dinheiro, cartão, suor, paciência, desce. A segunda quadra, a primeira. Cléc, abre. Faz carinho nele, faz carinho nela. Todos vivos, punhado. Roupas fora. Ela em cima, ele ao lado. Paz...
ela
Tem medo. De mosquito, e todo ser alado. De errar. De filme de medo à noite, e de cometer de novo. Tem medo. De perder, de perder, de perder. A vida, a hora, o dia. A festa, a sí. Tem. Muito. Mas tem mais de deixar de ser. E se doer? E se não doer, e ninguém disser nada? E se ninguém for? Melhor. Confirma tudo. E o 'errar' pode ser tirado da lista.
1 de março de 2007
odeio gostar [1]
"O cheiro de gasolina desvia o ouvido daquela voz. No e-mail, a mensagem do Greenpeace afirma que o mundo está esquentando. O cheiro esquenta. A voz gela. Me esfria.
"Esse cheiro entorpece. Pode ser que o vizinho de cima tenha posto fogo nas roupas. Logo a fumaça branca vai entrar por baixo da porta e eu vou fingir que não vi.
Posso fechar os olhos e imaginar que sou um avião, rasgando nuvens.
Sinto o vapor no rosto, o ar rarefeito. De um raro efeito. A voz, no fundo, vai ficando pra depois. Depois, sim.
Permita-me trocar o que tenho dentro por fumaça. De certo ela é mais consistente. Inflo. Postura etérea me arranca do chão. Assopra. Assopra. Assopra. Apagou? Não. Não é tão simples, dar fim.
Cadê a fumaça? Onde foi a minha fumaça. Esse cheiro de gasolina é dele, mas a fumaça das roupas queimando, as nuvens, o avião, a tua voz. É tudo meu. Eu inventei, eu desenhei, preenchi, dei cor e...
Eu sonhei que morria. Eu sonhei que te amava. Sonhei que podia passar pelas coisas sem me sentir mal por elas serem tão boas"